Dúvidas sobre o livro de Gênesis

Respondido por Pe. Marcelo Cervi

1. Qual a melhor interpretação para os primeiros capítulos do livro do Gênesis?

O Catecismo da Igreja Católica (n. 289) nos oferece a melhor luz para interpretar essas passagens:

“Entre tudo quanto a Sagrada Escritura nos diz sobre a criação, os três primeiros capítulos do Gênesis ocupam um lugar único. Do ponto de vista literário, estes textos podem ter diversas fontes. Os autores inspirados puseram-nos no princípio da Escritura, de maneira a exprimirem, na sua linguagem solene, as verdades da criação, da sua origem e do seu fim em Deus, da sua ordem e da sua bondade, da vocação do homem, e enfim, do drama do pecado e da esperança da salvação. Lidas à luz de Cristo, na unidade da Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja, estas palavras continuam a ser a fonte principal para a catequese dos mistérios do «princípio»: criação, queda, promessa da salvação.”

2. Qual o significado da palavra “luzeiros” no relato da criação no livro do Genesis (Gn 1, 14.16)?

O termo se refere especificamente ao Sol, à Lua e às estrelas. A palavra hebraica ָמאֹור (ma’ôr) significa “luz, corpo luminoso, fonte de luz”. Em português, foi traduzida como “luzeiro”: aquilo que porta ou transmite luz. O autor sagrado evita chamar Sol e Lua por seus nomes comuns, usados em cultos pagãos como deuses (Shamash, Sin, etc.); em vez disso, os chama simplesmente de “luzeiros”, para mostrar que não são deuses, mas criaturas a serviço de Deus, que tem a função de reger o tempo, iluminar a terra e manifestar a ordem da criação. Santo Agostinho, na Cidade de Deus (XI,30), diz que esses astros não são divindades, mas “instrumentos para que a criatura humana aprenda a contar o tempo”. Na liturgia, o salmo 136(135), 7-9 retoma esse sentido:

“Ele fez os grandes luzeiros: – Sua misericórdia é para sempre! O Sol para governar o dia: – Sua misericórdia é para sempre! A lua e as estrelas para presidirem a noite: – Sua misericórdia é para sempre!”

3. O Jardim do Éden ficava na Terra ou no Céu?

O Éden, segundo o Gênesis, é descrito como um lugar real da terra: Gn 2,8 fala de um jardim ao oriente e Gn 2,10-14 descreve um rio que saía do Éden e se dividia em quatro braços: Fison, Geon, Tigre e Eufrates — dois deles rios conhecidos no Oriente Médio. Isso indica uma localização terrestre: algum lugar do Crescente Fértil, provavelmente simbólico. Santo Agostinho, na “Cidade de Deus” (XIII,21), admite que pode ter sido um lugar real, mas insiste que o mais importante é o significado espiritual: o Éden é imagem da amizade com Deus e da vida de inocência original. A Igreja, portanto, entende que o relato tem um fundo histórico, mas sobretudo uma mensagem teológica: mostrar que o homem foi criado para a amizade com Deus e perdeu esse dom pelo pecado. O verdadeiro Éden, o verdadeiro “Paraíso”, é o Céu, para onde Cristo conduz os redimidos (cf. Lc 23,43: “Hoje estarás comigo no Paraíso”).

4. Se Deus criou tudo e viu que tudo era bom, como entender o fato de Ele ter criado a árvore do conhecimento do bem e do mal? Como compreender que o mal estivesse associado a essa árvore, a qual o próprio Deus criou?

No livro do Gn encontramos vários tipos de árvores (Gn 2,16-17), mas existem dois tipos especiais de árvore:

  • a “árvore da vida” (Gn 3,3.22)
  • a “arvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 3,5)

Na Bíblia, a sabedoria é comparada com uma árvore (cf. Pr 3,18) e o ser humano que cumpre a Lei de Deus é comparado como uma árvore viçosa plantada à beira do riacho (cf. Sl 1,1-3). A expressão “comer de todas as árvores”, inclusive “da árvore da vida” equivale a buscar adquirir a sabedoria e a verdade que vem de Deus.

Contudo, o ser humano escolhe “a árvore do conhecimento do bem e do mal” = quer ter suas certezas, alcançar por si mesmo o juízo do que é bem e do que é mal seguindo seus critérios, sem referência a Deus.

Nesse sentido, a “árvore do conhecimento do bem e do mal” também pode ser interpretada é como um sinal da liberdade: Deus dá ao homem a possibilidade de escolher o bem e rejeitar o mal segundo a Sua Vontade, mas sem forçá-lo. Assim, a árvore não é o mal, mas o limite colocado por Deus para lembrar ao homem que sua vida precisa estar em relação com Ele, o Criador, que sabe e ensina o que é sábaio, justo, correto.

5. A serpente também foi criada por Deus. Como entender o fato de ela ter sido usada como instrumento do mal? Ela já era maligna desde a criação ou foi influenciada pelo mal posteriormente?

Como animal em si, a serpente não foi criada má: como todo ser criado por Deus, foi feita boa. Mas a serpente de Gn 3 é um símbolo. Era muito usado pela religião de Canaã, terra onde vivia o Povo de Deus, onde era vista como símbolo de vida eterna (pela troca constante da pele). No Antigo Oriente era comum associar serpentes à astúcia, à vida e à morte. A tradição judaica posterior e o Novo Testamento identificam a serpente com Satanás (cf. Sb 2,24; Ap 12,9; 20,2).

6. Nos primeiros capítulos já aparecem referências a querubins. Isso significa que antes da criação do mundo material já existia o mundo espiritual, assim como o bem e o mal? O mal (como Satanás ou os anjos caídos) já existia antes da criação da Terra?

Sim: a fé da Igreja ensina que os anjos são criaturas espirituais criadas antes do homem (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 328-332). Entre eles houve uma rebelião, conhecida como a queda dos anjos: alguns, por livre escolha, rejeitaram a Deus (cf. 2Pd 2,4; Ap 12,7-9 e CIC 391-395). Quando o homem foi criado, o mal já existia no mundo espiritual, não como força igual a Deus, mas como fruto da liberdade criada que se rebelou. Isso explica a presença do tentador já no Éden.

7. Em algumas literaturas paralelas aparece a figura de Lilith, suposta primeira mulher de Adão. A Igreja Católica se posiciona de alguma forma sobre isso?

Essa figura vem de tradições judaicas extra-bíblicas e de textos apócrifos/folclóricos (como o Alfabeto de Ben Sira e lendas mesopotâmicas). Na Bíblia não existe nenhuma referência a Lilith como esposa de Adão. A Igreja Católica não reconhece essa tradição: para nós, a única narrativa inspirada é a de Gn 2-3, em que Deus cria a mulher a partir de Adão.

8. Sobre Adão e Eva: estariam eles no céu ou no inferno? A Igreja traz algum ensinamento sobre esse ponto?

A Escritura não nos diz claramente o destino final de Adão e Eva. O que sabemos é que eles pecaram, mas também receberam a promessa da salvação (Gn 3,15: o Protoevangelho, primeira boa-nova do Redentor).

A tradição cristã oriental costuma lembrar Adão e Eva no ícone da Ressurreição: Cristo descendo aos infernos e erguendo Adão e Eva pela mão. No Ocidente, a Igreja não definiu um ponto final, mas vários Padres e doutores da Igreja consideram plausível que, reconciliados pela misericórdia divina, tenham sido salvos por Cristo. Esta é a posição de Santo Irineu de Lião (Cf. Adversus Haereses III, 23,7), Santo Ambrósio de Milão (Cf. Exameron V, 24, 90) e São João Damasceno (cf. Homilia sobre o Sábado Santo, PG 96, 612).

No Martiriológio Romano, no dia 24 de dezembro, se encontra a “Comemoração de todos os santos antepassados de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão, filho de Adão, isto é, dos patriarcas que agradaram a Deus e foram encontrados justos, os quais, sem terem obtido a realização das promessas, mas vendo-as e saudando-as de longe, morreram na fé: deles nasceu Cristo segundo a carne, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos.”

9. Por que a oferta de Caim não agradou ao Senhor? Gn 4, 3-5

Abel ofereceu as primícias e o melhor (a gordura) do seu rebanho. Caim ofereceu apenas “do fruto da terra”, sem indicar que fosse o melhor. O centro não está no tipo de sacrifício (colheita ou rebanho), mas na disposição interior do coração. A oferta de Caim não agradou ao Senhor porque não foi feita com fé e coração sincero, não foi generosa como a de Abel, que deu o melhor. A Carta aos Hebreus (11,4) diz que “Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que Caim”. Santo Agostinho diz que a diferença não estava só na oferta, mas no coração do oferente: Abel era justo, Caim era soberbo. (Cidade de Deus XV,7). São João Crisóstomo fala que Abel foi mais cuidadoso e deu a Deus o melhor; Caim agiu de modo negligente. (Homilias sobre o Gênesis XIX). Por fim, o Catecismo (CIC 2569) nos recorda que a oração da oferta só é agradável se vier de um coração reto.

10. Em Gn 4,14 pode-se entender que existiam outras pessoas além de Adão, Eva e seus filhos. Se toda a humanidade descende deles, de onde vieram esses outros habitantes que o versículo fala?

Em Gn 4,14, Caim teme ser morto por “qualquer um que o encontrar”. À primeira vista, isso levanta a questão: quem seriam essas pessoas, se até então só se falou de Adão, Eva, Caim e Abel? O Gênesis não apresenta uma genealogia exaustiva: em Gn 5,4 lemos: “Adão viveu oitocentos anos e gerou filhos e filhas.” Ou seja, o primeiro casal teve muitos outros filhos e netos que o texto não menciona em detalhes. É muito provável que Caim estivesse pensando neles (irmãos, sobrinhos, parentes) como possíveis agressores. Importante = Os autores bíblicos escrevem de forma teológica e não pensam em redigir um livro de história ou biologia. O foco é mostrar o pecado, a consequência e a misericórdia de Deus e não listar cada habitante da terra. Assim, o texto pode pressupor a existência de grupos humanos que não aparecem explicitamente na narrativa.

11. Quem eram os “filhos de Deus” citados em Gn 6,2?

Há três principais interpretações: a) De acordo com uma antiga tradição judaica (cf. Livro de Henoc 6–7), os “filhos de Deus” seriam anjos que se relacionaram com mulheres humanas, resultando em uma descendência incomum, sendo essa visão adotada por alguns segmentos do judaísmo (mencionada em 2Pd 2,4 e Jd 6); b) Seriam “descendentes de Set” – a linhagem justa que invocava o nome do Senhor em Gn 4,26 – considerando as “Filhas dos homens” como a descendência de Caim – marcada pelo pecado. O texto denunciara a mistura das linhagens, a perda da fidelidade a Deus; c) Outra interpretação antiga (Filão de Alexandria, alguns Padres) entende “filhos de Deus” como reis ou chefes tirânicos, que tomavam mulheres à força. A interpretação mais comum é a segunda: a união entre os justos e os pecadores levou à corrupção geral da humanidade.

12. Quem eram os gigantes de Gn 6,4?

O termo hebraico ְנִפִלים (Nephilim) vem de uma raiz que significa “cair” (npl = cair). Pode significar: “os caídos”, talvez em referência a guerreiros violentos ou “gigantes”, como traduz a Septuaginta (gr. gigantes). Possíveis interpretações são: a) Descendência dos “filhos de Deus” e “filhas dos homens” – vistos como seres de força e estatura extraordinária; b) Heróis guerreiros da antiguidade – lembrados como tiranos violentos; c) Símbolo do mal e da violência – o texto prepara o leitor para entender por que “a maldade do homem cresceu tanto” (Gn 6,5), justificando o dilúvio. O autor sagrado não quer fazer mitologia, mas mostrar que a corrupção da humanidade chegou ao extremo: até os “filhos de Deus” (os justos) se misturaram ao pecado, e disso nasceram sociedades violentas (os “gigantes”). É um prólogo teológico ao dilúvio: quando o mal chega a esse ponto, Deus intervém para purificar.

13. Deus se arrependeu de ter criado o ser humano? (Gn 6,6)

O livro do Gênesis diz que Deus “se arrependeu de ter criado o homem” (Gn 6,6). Mas precisamos compreender bem esse texto. Em primeiro lugar, é preciso considerar que se trata de um “Antropomorfismo bíblico”: a Escritura muitas vezes fala de Deus com termos humanos (arrependimento, ira, cólera…), para que possamos entender melhor sua ação. Mas em Deus não há mudança nem contradição: Ele é imutável em sua bondade.

O mesmo Gênesis mostra que esse “arrependimento” não foi definitivo, porque Deus fez uma nova aliança com Noé após o dilúvio. Mais tarde, fez aliança com Moisés e, por fim, selou a nova e eterna aliança em Cristo, infinitamente superior às anteriores.

São João ensina: “Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O “arrependimento” de Deus, na verdade, é revelado como misericórdia e amor fiel, que nunca abandona sua criação. Toda leitura bíblica precisa ser iluminada por Cristo. O Antigo Testamento encontra seu sentido pleno em Jesus, que é a chave da Escritura.

14. Quantos dias durou o dilúvio? 40 ou 150 dias?

A narrativa de Gênesis combina duas tradições antigas:

  • 40 dias: é o tempo que a chuva caiu (Gn 7,12.17).
  • 150 dias: é o tempo que as águas permaneceram cobrindo a terra até começar a baixar (Gn 7,24).

Assim, não há contradição: choveu durante 40 dias e noites, mas o efeito total do dilúvio (com a terra coberta de água) durou 150 dias até as águas começarem a diminuir.

15. Quem entrou na arca de Noé?

Noé levou: sua esposa, seus três filhos (Sem, Cam e Jafé) e as esposas de cada um (Gn 7,7.13). Ou seja, oito pessoas ao todo (cf. 1Pd 3,20).

16. Como começou a humanidade depois do dilúvio?

Segundo o relato bíblico, a nova humanidade teria se originado a partir dos filhos de Noé e suas esposas. O capítulo seguinte (Gn 10 – chamado de “tabela dos povos”) apresentam a descendência deles, que se torna a origem simbólica de todas as nações conhecidas por Israel.

Em termos literais, sim, haveria casamentos entre parentes próximos. Isso, no entanto, no mundo antigo era entendido como parte natural da origem da humanidade (assim como em Adão e Eva, onde os primeiros filhos também só poderiam se casar entre irmãos ou primos).

Mais importante, o texto tem caráter teológico e não científico ou biológico: o que importa é mostrar que toda a humanidade tem uma mesma origem e que o pecado não é mais forte que a fidelidade de Deus.

17. Noé representa toda a humanidade?

Sim, Noé é apresentado como o justo que encontrou graça diante de Deus (Gn 6,8-9). Ele representa a humanidade fiel que se salva pela obediência a Deus. A mensagem central do dilúvio não é apenas histórica, mas teológica: Deus castiga o pecado, mas salva os justos; e a humanidade recomeça a partir de uma nova aliança (Gn 9).

18. Qual o sentido de Gn 9,4: “somente não comereis carne com sua vida, que é o sangue”?

Na mentalidade do povo antigo, há uma conexão íntima entre o sangue e a vida: o sangue é o portador da vida. Assim, proibir o consumo de carne com sangue era uma forma de respeitar a vida do animal, que pertence somente a Deus. O homem pode matar animais para se alimentar, mas não pode se apropriar daquilo que simboliza a vida em si.

19. Noé tinha problema com alcoolismo? Por que ele amaldiçoou Canaã que não foi quem o ofendeu?

Em Gn 9, 20-21 se conta que, após o dilúvio, Noé cultivou uma vinha, bebeu do vinho e se embriagou, ficando nu em sua tenda. O texto não apresenta Noé como alcoólatra, mas como alguém que experimenta pela primeira vez o vinho, fruto da nova criação, e acaba em excesso. Ou seja: é um episódio isolado, não um vício. Em Gn 9,22-24 se diz que Cam, filho de Noé, “viu a nudez de seu pai” e contou aos irmãos. Na cultura bíblica, “ver a nudez” não é apenas olhar, mas implica falta de respeito, escárnio, desonra. Sem e Jafé, ao contrário, cobrem o pai sem olhar, mostrando respeito filial. Por que a maldição recai sobre Canaã e não sobre Cam? Cam é o pai de Canaã (Gn 9,22): a maldição atinge sua descendência como consequência do pecado do pai. Na mentalidade antiga, a bênção e a maldição podiam se estender aos descendentes (cf. Ex 20,5). Importante: O texto foi escrito muito depois, quando Israel já estava em conflito com os povos cananeus e a maldição de Canaã explicava teologicamente a sujeição futura desses povos a Israel. O episódio não quer mostrar vingança pessoal de Noé, mas ensinar a gravidade da falta de respeito aos pais e como isso traz consequências para as gerações.

20. Deus aparecia em carne no tempo dos Patriarcas?

Não. Na época dos Patriarcas (como em toda a história antes da Encarnação de Cristo), Deus não se manifestava em carne humana. Ele falava, se revelava e se fazia presente de outras formas: – pela voz (como a ordem a Noé para construir a arca – Gn 6,13-22); – por visões e sonhos (como mais tarde com Abraão ou José do Egito); – por anjos que representavam sua presença. Em Gn 18, Abraão recebe três visitantes misteriosos: é uma teofania. Jacó luta com “um homem” (Gn 32,25-31) e depois diz: “Vi Deus face a face”. Aqui também é um sinal simbólico, não a visão direta da essência divina. Moisés fala com Deus “face a face, como um homem fala com seu amigo” (Ex 33,11). Mas o próprio capítulo explica que não é uma visão plena, mas uma intimidade única, uma comunicação direta. A grande novidade vem no Novo Testamento: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Em Jesus Cristo, Deus se fez visível: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9).

21. Gn 16: Se o homem deve ser fiel ao casamento, por que Abraão teve sexo com uma serva fora do casamento?

Em Gn 16, Sara (então chamada Sarai), que era estéril, propõe a Abraão que tenha um filho com a serva egípcia Agar. Na mentalidade da época, isso era uma prática comum: se a esposa não podia ter filhos, o marido poderia gerar descendência com uma serva da casa, e o filho seria considerado da esposa legítima. A Bíblia não esconde as fraquezas dos grandes personagens: Abraão é o “pai da fé”, mas também erra. O episódio com Agar mostra a impaciência humana diante das promessas de Deus (Abraão e Sara não esperam o tempo de Deus e procuram resolver por conta própria) e as consequências do pecado: rivalidade, ciúmes, sofrimento (Gn 16,4-6). Deus, no entanto, deixa claro que o filho da promessa não é Ismael (filho de Agar), mas Isaac, nascido de Sara (Gn 17,19-21). Assim, aprendemos que a promessa se cumpre pela fidelidade de Deus, e não pelos atalhos humanos. É importante lembrar que na época patriarcal, não havia ainda uma revelação plena sobre o matrimônio. A poligamia e o concubinato eram tolerados socialmente, mas não correspondiam ao plano original de Deus. Jesus mais tarde esclarece: “No princípio não foi assim… os dois serão uma só carne” (Mt 19,4-6). Ou seja: a fidelidade conjugal é o plano de Deus desde a criação (Gn 2,24), mas foi sendo compreendida aos poucos na história da salvação, até ser plenamente revelada em Cristo.

22. Porque Abrão deixou que Sarai fosse tomada pelos egípcios e Deus castiga o faraó, sendo que foi Abrão que mentiu por medo? Em Gênesis 20, Abraão insiste em apresentar Sara como irmã, qual o contexto da época para que ele continuasse com esse medo?

Abraão apresentou Sara como irmã no Egito (Gn 12,10-20) e em Gerara (Gn 20), por medo de ser morto. Na cultura da época, reis e chefes podiam tomar a esposa de estrangeiros e matar o marido, mas o “irmão” podia negociar: Abraão, assim, tentava ganhar tempo e proteção. O faraó e Abimelec corriam o risco de tocar na mulher destinada a ser mãe da descendência da aliança, mãe da promessa (Gn 17,19). A punição divina não é tanto “culpa” deles, mas um sinal pedagógico: ninguém pode impedir os planos de Deus.

23. O povo árabe é descendente de Ismael?

Ismael, filho de Abraão com Agar (a serva egípcia de Sara, cf. Gn 16), recebeu a promessa: “dele farei uma grande nação” (Gn 17,20). Ele gerou 12 príncipes, que habitaram a região da Arábia (Gn 25,12-18) de forma que a tradição bíblica e o próprio islamismo reconhecem Ismael como pai dos povos árabes. Mais que uma genealogia biológica, trata-se de uma herança simbólica e espiritual. De fato, historicamente, não dá para afirmar que todos os povos árabes descendem biologicamente de Ismael, mas teologicamente e culturalmente, Ismael é visto como pai simbólico das nações árabes, assim como Isaac é o pai dos israelitas. Ambos são filhos de Abraão: por isso, judeus, cristãos e muçulmanos são chamados de “religiões abraâmicas”.

24. Gn 22: Deus fala com Abraão no início do capítulo (Gn 22,1), porém a renovação da promessa de capítulos passados (12 e 15) é feita por um anjo como se fosse feita por ele. O oráculo do Senhor (Gn 22, 16) indica que o Anjo fala por / em nome de Deus à Abraão ou poderia ser considerado que aqui é outra manifestação direta de Deus, porém atribuída a um anjo?

No AT, muitas vezes esse “anjo” não é um ser distinto de Deus, mas uma forma literária de descrever a manifestação de Deus (uma “teofania”), mantendo, ao mesmo tempo, a transcendência de Deus. Em Gn 22,16, o “anjo do Senhor” diz: “Juro por mim mesmo — oráculo do Senhor”. Muitos estudiosos entendem que: – não se trata outro ser trazendo uma mensagem indireta, mas o próprio Deus se manifestando através da figura do “anjo do Senhor”; – o “anjo” é uma forma reverente de falar de Deus sem usar demasiadamente o Nome divino; – a renovação da promessa (que de fato retoma Gn 12 e 15) não é “delegada a um intermediário”, mas é a própria palavra de Deus a Abraão, mediada literariamente. Assim, não seria um ser criado distinto que fala por conta própria, mas uma forma bíblica de expressar a presença e a voz direta de Deus, ainda que mediada por um mensageiro. É, portanto, uma teofania, em que Deus mesmo confirma solenemente a promessa a Abraão.

25. Gn 25-27: O Senhor havia dito à Rebeca que o primeiro filho seria subordinado ao segundo. A eleição de Jacó demonstra que Deus é o único que pode de um mal tirar um bem, ou seja, apesar do coração humano e de sua liberdade, a providência divina conduz a história?

Deus disse a Rebeca: “O mais velho servirá ao mais novo” (Gn 25,23). Mesmo pelo engano de Jacó, cumpriu-se a promessa, pois “amei a Jacó, mas rejeitei a Esaú” (Rm 9,13). A eleição de Jacó mostra que Deus não escolhe segundo critérios humanos (força, primogenitura, mérito), mas segundo o mistério da sua graça (cf. Rm 9,10-13). A história da salvação inteira é conduzida por essa providência: mesmo os pecados humanos não frustram o plano divino, porque Deus sempre pode reconduzir tudo para o bem, pois sua providência conduz a história (cf. Sb 11,26).

26. Jacó era o filho da promessa? Como devemos olhar para a atitude de Rebeca e de Jacó? Por que Isaac não pode dar também a Esaú uma benção? A palavra quer nos mostrar o perdão de Deus diante do erro e o perdão que Esau também deveria ter dado a Jacó, seu irmão?

Humanamente, houve engano, astúcia e pecado (mentira e fraude). Mas mesmo através da fragilidade humana, Deus realiza seu plano. Rebeca acreditava na profecia e quis “ajudar” a promessa a se cumprir — mas acabou agindo com meios errados. Jacó também agiu de modo imperfeito, mas a Escritura mostra que, mais tarde, sua vida será marcada pela purificação, lutas e reconciliação. A história não termina na rivalidade: em Gn 33, Esaú e Jacó se reencontram, e Esaú abraça e perdoa o irmão. Isso mostra que, mesmo com feridas e traições, a reconciliação é possível pela graça de Deus. A Palavra, portanto, nos ensina duas coisas: Deus é fiel à sua promessa, mesmo com a fraqueza humana. O perdão é o caminho para curar a divisão entre irmãos.

27. Sobre Gn 27: o direito de primogenitura e a benção paterna foram obtidos por Jacó mediante astúcia e no segundo caso, com arquitetura materna. Isso era um desejo de Deus? O texto não fala… Jacó era já o preferido de Deus na linhagem do seu povo? Afinal, Esau já havia se casado com mulheres cananeias…

Sobre a primogenitura (Gn 25,29-34): Esaú, movido pela fome, vendeu o direito de primogênito a Jacó por um prato de lentilhas. Aqui aparece a sua desvalorização das coisas sagradas: “Esaú desprezou a sua primogenitura” (Gn 25,34). Quanto à bênção de Isaac (Gn 27), Jacó a recebe mediante engano, com a ajuda de Rebeca. O texto mostra o lado humano (astúcia, mentira), mas também que a bênção era irrevogável e, portanto, mesmo em meio à fraqueza humana, o plano de Deus se cumpre. Era desejo de Deus? O texto não afirma explicitamente que Deus desejava o engano de Jacó e Rebeca. O que sabemos é que Deus já havia revelado a Rebeca: “O mais velho servirá ao mais novo” (Gn 25,23). Ou seja, a eleição divina estava sobre Jacó antes do episódio do engano. O modo como isso se concretiza (astúcia humana) mostra que Deus permite a liberdade do homem — até em seus erros — e mesmo assim conduz a história segundo sua providência. Por que Esaú não foi escolhido? Além da profecia já dita, a própria narrativa bíblica mostra sinais de que Esaú não correspondia ao ideal da promessa: ele desprezou a primogenitura (Gn 25,34) e se casou com mulheres cananeias (Gn 26,34-35), o que trouxe desgosto aos pais e foi visto como desvio da identidade da família de Abraão, chamada a se manter separada dos povos vizinhos. Assim, o autor bíblico apresenta Esaú como figura que não valoriza a aliança, enquanto Jacó, mesmo com astúcia, é o escolhido de Deus para dar continuidade ao plano da salvação.

28. Gn 27: Considerando a benção de Isaac à Jacó e, não levando em conta o modo como ela foi obtida, a benção, de caráter irrevogável, é uma prefiguração dos Sacramentos, os quais realizam aquilo que simbolizam?

Não exatamente. A bênção de Isaac é um ato patriarcal limitado ao contexto da promessa feita a Abraão. Os sacramentos são instituídos por Cristo e têm alcance universal de salvação. Mas a lógica é semelhante: ambos realizam aquilo que expressam, independentemente da fragilidade humana.

29. Poderiam comentar por que após a luta de Jacó com o anjo, que lhe renomeou “Israel”, ora o livro sagrado lhe chama Jacó, ora Israel? Às vezes numa curta perícope (ex: Gn 45, 27-28)

Isso pode ser devido a vários fatores:

  • Fator literário: o livro do Gênesis é fruto de redações e tradições diferentes (javista, eloísta, sacerdotal) que foram unificadas. Em algumas fontes antigas o patriarca é chamado Jacó, em outras Israel, e o texto final preservou essa alternância.
  • Fator narrativo: às vezes o autor quer destacar a dimensão histórica e pessoal (Jacó, o homem com sua astúcia, fragilidades e dramas familiares), e em outras a dimensão coletiva e teológica (Israel, o patriarca que dá origem ao povo).
  • Fator teológico: o uso dos dois nomes recorda que a história da salvação é sempre uma continuidade: o homem antigo (Jacó) não desaparece, mas é transformado pela graça (Israel).

No exemplo citado (Gn 45,27-28), em um só trecho, o narrador passa de Jacó a Israel: “Jacó” quando fala do homem velho, abatido pelo sofrimento. “Israel” quando fala do patriarca que retoma a esperança e decide mover- se em fidelidade ao desígnio de Deus. Portanto, o uso alternado de Jacó e Israel não é descuido, mas recurso literário e teológico. Ele mostra, ao mesmo tempo, a continuidade da pessoa histórica e a novidade da vocação que Deus lhe confia: ser pai de um povo que traz o nome de “Israel”.

30. Por que em Gn 24,2 (Abração ao servo) e em Gn 47,29 (Jacó a José), ao fazer um juramento, se colocava a mão na coxa?

A palavra “coxa” em hebraico também pode significar a região dos lombos ou órgãos genitais, lugar da fecundidade e da descendência. Jurar com a mão “na coxa” era um ritual de juramento solene, ligado à promessa de descendência e à bênção divina. Era um modo de dizer: “Juro diante de Deus que cumpro isso, sob pena de trair a vida e a promessa que Ele me confiou.”

31. Por que a bênção que Jacó deu ao seu filho Judá é tão diferente das bênçãos dadas aos outros filhos?

No final da sua vida, Jacó abençoou a sua descendência e fez um oráculo importante relacionado a Judá (Gn 49,8-12):

  • Teus irmãos te louvarão (v.8). Gozará de um primado entre os seus irmãos e terá vitória sobre os seus inimigos.
  • É um leãozinho (v.9). Judá será como um leão, imponente, altivo, dominador. A realeza de Judá será uma realeza vicária (em nome de outro) e temporânea, até que chegue o Messias.
  • O cetro e o bastão de comando (v.10). Terá sempre o cetro e o cajado (bastão pastoril) de chefe até que sejam dados a um soberano universal (o Messias).
  • Vinho e leite (v.12). Representam a abundância (vinho = agricultura e leite = criação pastoril).

A tradição posterior de Israel viu o cumprimento (parcial) desse oráculo num membro dessa tribo: DAVI. A partir de Davi, os profetas anunciam o cumprimento definitivo do oráculo no MESSIAS que há de vir. Por isso os judeus contemporâneos a Jesus, tiveram dificuldade de crer Nele; muitos não aderiram ao Seu anúncio porque não tinha Ele um poderio militar capaz de dominar e expulsar os inimigos que subjugavam a Terra Santa. Com a morte e aparente derrota do Senhor, essa profecia parece definitivamente fora de possibilidade de cumprimento. Daí a deserção de muitos.

32. Qual o significado dos elementos invocados na bênção de Jacó a seu filho José?

A bênção de Jacó a José foi uma bênção especial (cf. Gn 49,25-26). No v. 25, Jacó invoca bênçãos “que descem do alto”, ou seja a abundância de chuva; também fala de “bênçãos do abismo embaixo”, que são as águas subterrâneas (cf. Gn 7,11;8,2a) as quais trazem fertilidade ao solo; já as bênçãos “dos seios e do útero” significam crias/filhotes incontáveis, ou seja, ótima reprodução dos rebanhos. No v. 26 se fala dos “montes antigos”, que lembram a proteção e a proximidade divina e as “colinas eternas” são uma referência aos terrenos dados para sempre.

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